A NOITE (La Notte) Itália/França
1960 – Direção de Michelangelo Antonioni – elenco: Marcello Mastroianni, Jeanne
Moreau, Monica Vitti, Bernhard Wicki, Rosy Mazzacurati, Maria Pia Luzi, Guido
A. Marsan, Vittorio Bertolini, Vincenzo Corbella, Ugo Fortunati, Gitt Magrini,
Umberto Eco, Roberta Speroni, Giorgio Negro – 122 minutos
ANTONIONI EXPÕE O DILEMA DOS
PERSONAGENS E SE RESTRINGE A FILMÁ-LOS COM ELEGANTE DISCRIÇÃO.
Após dez anos de casamento, Lídia e
Giovani passam uma noite permeada de momentos de angústia e luxúria, numa busca
involuntária de respostas para a crise de seu relacionamento. Segundo filme da
célebre "Trilogia da Incomunicabilidade", formada ainda por A
AVENTURA (1960) e O ECLIPSE (1962), A NOITE é um marco do cinema moderno que
não pode ser preterido por um bom cinéfilo. Nada além de tédio, arrependimento
e dor. Seriam estes os motivos primordiais para dar cabo a uma relação? Haveria
remédio para a enfermidade de um sentimento, seja ele bom ou maligno? Todo
casal tem, claro, seus momentos de alegria e tristeza, faz juras de amor
eterno, enfrenta brigas e faz reconciliações, aspectos que logo vêm a nossa
mente ao abordarmos o complexo tema “casamento”. A crise desponta numa convivência
a dois a partir do instante em que a rotina passa a dividir a mesa de jantar, o
carro, o banheiro, a cama e tudo mais. Uma pessoa insatisfeita busca de todas
as formas escapar do vazio interior, uma angústia penetra-lhe o peito,
acompanhada pelo medo do isolamento e pela frustração do erro, o significado de
tudo se altera bruscamente. E parece não haver malogro entre os vizinhos, o
problema é isolado, exclusivo! Tampouco a riqueza material tem importância, o
divertimento proporcionado pelo dinheiro é transitório, efêmero. O que sobra?
Nada além de tédio, arrependimento e dor.
A NOITE é uma verdadeira obra-prima. A personagem de Jeanne Moreau, Lidia, é
talvez a mais próxima da realidade de toda a obra do cineasta italiano. Ela
simboliza a mais pura condição de enfado e tristeza que um indivíduo é obrigado
a sustentar no momento em que percebe a crise no próprio casamento. Lidia é uma
mulher bonita, rica e inteligente, casada com o famoso escritor Giovanni
Pontano (Marcello Mastroianni), mas algo não está bem, e ela sabe disso. Um
desconfortável silêncio a separa do marido, como um cordão de isolamento; eles
parecem cansados um do outro. Lidia tenta evitar Giovanni, ela caminha pelas ruas
de Milão atrás de alguma coisa que a distraia, que a faça esquecer do marasmo
de sua existência burguesa e de seu matrimônio repleto de lacunas. No entanto,
nada consegue captar-lhe o interesse por muito tempo. Lidia ainda quer chamar
atenção, rebola displicentemente entre uma calçada e outra, feito uma
prostituta voltando para casa após uma cansativa noite de trabalho. Ela
telefona para que Giovanni vá buscá-la, com um falso entusiasmo na voz — não
pode ser acusada de não tentar, ao menos, fingir que está tudo bem (ela nem
gosta de chorar diante do marido). Giovanni é do tipo que leva uma vida mais
“passiva”, ele não corre atrás de novas distrações, aproveita unicamente
aquelas que lhe são impostas ao acaso. Valentina (Monica Vitti, na época casada
com Antonioni) é uma delas. Eles se conhecem numa festa promovida pelo pai
dela, um rico industrial chamado Gherardini, e têm breves oportunidades de
diversão e filosofia. Poderia ter sido qualquer outra mulher. O destino, porém,
reservou aquela para Giovanni. E ele teve sorte: em poucos minutos, Valentina é
capaz de ensinar mais sobre amor, solidão e respeito do que o escritor havia
jamais experimentado com seus livros.
A impressão que se tem é de que o
título faz metáfora ao crepúsculo no relacionamento do casal Pontano. Ambos
vivem em sonambulismo constante, sonham com as mesmas pessoas e com os mesmos
acontecimentos, todavia os interpretando de modo distinto. Os créditos iniciais
mostram uma cidade em transformação, gruas e guindastes rodeando prédios novos,
ainda inacabados; a idílica Milão vem sendo modernizada no auge do capitalismo
italiano da década de 1960. O casal vivido por Jeanne Moreau e Marcello Mastroianni,
porém, não acompanha essas mudanças com a mesma velocidade. Por um lado, Lídia
é a figura da mulher arrependida que não vê a hora de seu tormento existencial
acabar. Por outro lado, Giovanni é o intelectual que procura
"soluções" para os problemas dos outros e que é incapaz de enxergar
problemas em seu próprio ambiente (ou finge não enxergá-los). Lídia, ao final,
quer terminar tudo; Giovanni, recomeçar. Já Antonioni não apresenta qualquer
saída, expõe somente o dilema dos personagens e se restringe a filmá-los com
elegante discrição. Jeanne Moreau e Marcello Mastroianni, vale mencionar, são
atores excepcionais, capazes de dar tanta profundidade a seus personagens que
por pouco podemos examinar-lhes a alma. Mastroianni, por exemplo, filtra o
pedantismo e a pretensão de Giovanni para extrair dele, mais tarde, uma
considerável dose de ingenuidade e confusão — notável a cena em que ele escuta
Lídia a ler uma carta de amor sem no entanto perceber que ele mesmo a tinha
escrito anos atrás. Assim, testemunhamos uma divergência entre os
protagonistas: eles têm seus instantes de “fuga”, são atraídos por outros
parceiros, mas a vontade de retornar aos braços do companheiro original nunca é
de todo exterminada. Lídia conta ao marido que não o ama, então qual seria o
motivo de carregar aquela carta apaixonada na bolsa? Ela realmente não o ama
mais?
Os quinze anos compreendido entre A AVENTURA, de 1960, e O PASSAGEIRO: PROFISSÃO REPÓRTER, de
1975, representa aquela que é considerada a melhor fase da carreira de
Antonioni, falecido em 30 de julho de 2007. Foi o exato período em que ele
construiu sua reputação de revolucionário e inovador, ganhou prestígio nos
maiores festivais de cinema, foi indicado ao Oscar por BLOW UP – DEPOIS DAQUELE BEIJO (1966) e inspirou um número sem fim de
discípulos. A influência dele pode ser facilmente reconhecida na obra de
diretores do passado e do presente, no mundo todo, inclusive no Brasil (basta
conferir alguma coisa de Glauber Rocha, Walter Hugo Khoury e demais nomes do
Cinema Novo, isso para se ater aos mais antigos). O jeito de abordar o drama
psicológico para criar o máximo de tensão com o mínimo de diálogos, sem uma
trama aparente, ou até mesmo sem desfechos "mastigados", é típico de
Antonioni. Sua filmografia deve ser apreciada mais como um manifesto artístico
daquela época, fazendo consonância a Alain Resnais ou Jean-Luc Godard — seus
contemporâneos mais parecidos —, do que um mero produto do popular cinema
italiano. Com seus planos lentos e silenciosos, porém sufocados de expressão e
agressividade, Antonioni elevou o cinema a uma posição que antes somente a
literatura reclamava por soberania na história da arte. Não foi o único a fazer
isso, lógico, mas deu significante contribuição. A NOITE é o filme que
melhor consegue interagir com o público, refutando qualquer afinidade por seus
personagens estáticos e sendo bem-sucedido na verdadeira proposta de nos fazer
refletir. O ECLIPSE, de 1962,
consegue o mesmo. Pelo sim, pelo não, o melhor é conferir. Assistir a um
Antonioni jamais será perda de tempo.
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