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quarta-feira, 20 de setembro de 2017

A NOITE (La Notte) Itália/França 1960 – Direção de Michelangelo Antonioni – elenco: Marcello Mastroianni, Jeanne Moreau, Monica Vitti, Bernhard Wicki, Rosy Mazzacurati, Maria Pia Luzi, Guido A. Marsan, Vittorio Bertolini, Vincenzo Corbella, Ugo Fortunati, Gitt Magrini, Umberto Eco, Roberta Speroni, Giorgio Negro – 122 minutos  

ANTONIONI EXPÕE O DILEMA DOS PERSONAGENS E SE RESTRINGE A FILMÁ-LOS COM ELEGANTE DISCRIÇÃO.

Após dez anos de casamento, Lídia e Giovani passam uma noite permeada de momentos de angústia e luxúria, numa busca involuntária de respostas para a crise de seu relacionamento. Segundo filme da célebre "Trilogia da Incomunicabilidade", formada ainda por A AVENTURA (1960) e O ECLIPSE (1962), A NOITE é um marco do cinema moderno que não pode ser preterido por um bom cinéfilo. Nada além de tédio, arrependimento e dor. Seriam estes os motivos primordiais para dar cabo a uma relação? Haveria remédio para a enfermidade de um sentimento, seja ele bom ou maligno? Todo casal tem, claro, seus momentos de alegria e tristeza, faz juras de amor eterno, enfrenta brigas e faz reconciliações, aspectos que logo vêm a nossa mente ao abordarmos o complexo tema “casamento”. A crise desponta numa convivência a dois a partir do instante em que a rotina passa a dividir a mesa de jantar, o carro, o banheiro, a cama e tudo mais. Uma pessoa insatisfeita busca de todas as formas escapar do vazio interior, uma angústia penetra-lhe o peito, acompanhada pelo medo do isolamento e pela frustração do erro, o significado de tudo se altera bruscamente. E parece não haver malogro entre os vizinhos, o problema é isolado, exclusivo! Tampouco a riqueza material tem importância, o divertimento proporcionado pelo dinheiro é transitório, efêmero. O que sobra? Nada além de tédio, arrependimento e dor. 


A NOITE é uma verdadeira obra-prima. A personagem de Jeanne Moreau, Lidia, é talvez a mais próxima da realidade de toda a obra do cineasta italiano. Ela simboliza a mais pura condição de enfado e tristeza que um indivíduo é obrigado a sustentar no momento em que percebe a crise no próprio casamento. Lidia é uma mulher bonita, rica e inteligente, casada com o famoso escritor Giovanni Pontano (Marcello Mastroianni), mas algo não está bem, e ela sabe disso. Um desconfortável silêncio a separa do marido, como um cordão de isolamento; eles parecem cansados um do outro. Lidia tenta evitar Giovanni, ela caminha pelas ruas de Milão atrás de alguma coisa que a distraia, que a faça esquecer do marasmo de sua existência burguesa e de seu matrimônio repleto de lacunas. No entanto, nada consegue captar-lhe o interesse por muito tempo. Lidia ainda quer chamar atenção, rebola displicentemente entre uma calçada e outra, feito uma prostituta voltando para casa após uma cansativa noite de trabalho. Ela telefona para que Giovanni vá buscá-la, com um falso entusiasmo na voz — não pode ser acusada de não tentar, ao menos, fingir que está tudo bem (ela nem gosta de chorar diante do marido). Giovanni é do tipo que leva uma vida mais “passiva”, ele não corre atrás de novas distrações, aproveita unicamente aquelas que lhe são impostas ao acaso. Valentina (Monica Vitti, na época casada com Antonioni) é uma delas. Eles se conhecem numa festa promovida pelo pai dela, um rico industrial chamado Gherardini, e têm breves oportunidades de diversão e filosofia. Poderia ter sido qualquer outra mulher. O destino, porém, reservou aquela para Giovanni. E ele teve sorte: em poucos minutos, Valentina é capaz de ensinar mais sobre amor, solidão e respeito do que o escritor havia jamais experimentado com seus livros.

A impressão que se tem é de que o título faz metáfora ao crepúsculo no relacionamento do casal Pontano. Ambos vivem em sonambulismo constante, sonham com as mesmas pessoas e com os mesmos acontecimentos, todavia os interpretando de modo distinto. Os créditos iniciais mostram uma cidade em transformação, gruas e guindastes rodeando prédios novos, ainda inacabados; a idílica Milão vem sendo modernizada no auge do capitalismo italiano da década de 1960. O casal vivido por Jeanne Moreau e Marcello Mastroianni, porém, não acompanha essas mudanças com a mesma velocidade. Por um lado, Lídia é a figura da mulher arrependida que não vê a hora de seu tormento existencial acabar. Por outro lado, Giovanni é o intelectual que procura "soluções" para os problemas dos outros e que é incapaz de enxergar problemas em seu próprio ambiente (ou finge não enxergá-los). Lídia, ao final, quer terminar tudo; Giovanni, recomeçar. Já Antonioni não apresenta qualquer saída, expõe somente o dilema dos personagens e se restringe a filmá-los com elegante discrição. Jeanne Moreau e Marcello Mastroianni, vale mencionar, são atores excepcionais, capazes de dar tanta profundidade a seus personagens que por pouco podemos examinar-lhes a alma. Mastroianni, por exemplo, filtra o pedantismo e a pretensão de Giovanni para extrair dele, mais tarde, uma considerável dose de ingenuidade e confusão — notável a cena em que ele escuta Lídia a ler uma carta de amor sem no entanto perceber que ele mesmo a tinha escrito anos atrás. Assim, testemunhamos uma divergência entre os protagonistas: eles têm seus instantes de “fuga”, são atraídos por outros parceiros, mas a vontade de retornar aos braços do companheiro original nunca é de todo exterminada. Lídia conta ao marido que não o ama, então qual seria o motivo de carregar aquela carta apaixonada na bolsa? Ela realmente não o ama mais? 


Os quinze anos compreendido entre A AVENTURA, de 1960, e O PASSAGEIRO: PROFISSÃO REPÓRTER, de 1975, representa aquela que é considerada a melhor fase da carreira de Antonioni, falecido em 30 de julho de 2007. Foi o exato período em que ele construiu sua reputação de revolucionário e inovador, ganhou prestígio nos maiores festivais de cinema, foi indicado ao Oscar por BLOW UP – DEPOIS DAQUELE BEIJO (1966)  e inspirou um número sem fim de discípulos. A influência dele pode ser facilmente reconhecida na obra de diretores do passado e do presente, no mundo todo, inclusive no Brasil (basta conferir alguma coisa de Glauber Rocha, Walter Hugo Khoury e demais nomes do Cinema Novo, isso para se ater aos mais antigos). O jeito de abordar o drama psicológico para criar o máximo de tensão com o mínimo de diálogos, sem uma trama aparente, ou até mesmo sem desfechos "mastigados", é típico de Antonioni. Sua filmografia deve ser apreciada mais como um manifesto artístico daquela época, fazendo consonância a Alain Resnais ou Jean-Luc Godard — seus contemporâneos mais parecidos —, do que um mero produto do popular cinema italiano. Com seus planos lentos e silenciosos, porém sufocados de expressão e agressividade, Antonioni elevou o cinema a uma posição que antes somente a literatura reclamava por soberania na história da arte. Não foi o único a fazer isso, lógico, mas deu significante contribuição. A NOITE é o filme que melhor consegue interagir com o público, refutando qualquer afinidade por seus personagens estáticos e sendo bem-sucedido na verdadeira proposta de nos fazer refletir. O ECLIPSE, de 1962, consegue o mesmo. Pelo sim, pelo não, o melhor é conferir. Assistir a um Antonioni jamais será perda de tempo.


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