LAERTE-SE
– Brasil, 2017 – Direção Lygia Barbosa e Eliane Brum – Documentário – elenco:
Laerte Coutinho, Rita Lee – 100 minutos
UM FILME QUE É UM SOCO ELEGANTE NAS
MASCULINIDADES TÓXICAS
Um dos temas mais
debatidos (felizmente) ultimamente na sociedade mundial é a transexualidade,
visto que ainda é um campo cheio de perguntas e com poucas respostas fáceis de
serem compreendidas. LARTE-SE ainda que não trace com precisão quem é o
personagem título, é uma ótima ponte de discussão sobre a transexualidade. É o
primeiro documentário brasileiro produzido pela Netflix e acompanha
a cartunista e chargista paulistana Laerte Coutinho,
criadora de icônicos personagens como o super-herói Overman; o
onipotente Deus; os Piratas do Tietê; o modernoso e trágico Hugo Baracchini;
a menininha Suriá e o crossdresser
Muriel / Hugo. Aos 57 anos de idade (em 2009), Laerte assumiu sua
sua transgeneridade, ou algo perto disso, já que ela afirma estar “sob um guarda-chuva que inclui a travesti, o
crossdresser, a drag queen, o drag king” e que se sente feliz com
isso; em um processo reflexivo que vinha sendo “cozinhado” — inclusive com
uma série de dicas e talvez sublimações nada sutis em suas tirinhas —
desde 2004. Ela assumiu a sua
transexualidade, depois de três casamentos e três filhos como homem cisgénero.
O documentário faz uma investigação de todos os desafios que essa nova condição
requer de sua pessoa para viver como “mulher”, e a pergunta que ronda a análise
é: afinal o que é ser uma mulher?
O filme não se preocupa em necessariamente
formar um manifesto pró-direitos de transexuais, mas sim mostrar o que Laerte é
por dentro, discorrer sobre seus sentimentos, perdas e reflexões sobre sua
existência, tomando como um dos pontos de partida a morte de seu filho. Além
da questão trans, central no filme, diversos outros temas delicados são
tocados, sem nenhum peso desnecessário e apelativo: a morte do filho de Laerte,
suas relações familiares, corpo, sexualidade, nudez, política. O dinamismo
das conversas, a correta exploração do silêncio e a exploração de crises
existenciais de Laerte valem todo o filme. O formato escolhido pelas diretoras Lygia Barbosa
da Silva e Eliane Brum de um bate papo descontraído com Laerte sobre a vida é
muito interessante, já que acaba aproximando o público da história, além disso,
o acervo de imagens pessoas e as tirinhas que dizem muito sobre o personagem só
reforçam o tom leve e sereno da abordagem. Mas sem dúvida o que o torna o
documentário uma obra necessária é a abordagem da transexualidade, pois o fato
da cartunista ter vivido tantos anos dentro de uma condição que não era a
natural de sua existência, deixou traumas sentimentais que a fazem ser em
determinados momentos desconfiada de seus verdadeiros talentos e posição, por
isso, a produção acaba sendo uma forma de mostrar que ser transexual não é um
erro ou pecado e sim algo inerente ao desejo. Um destaque que merece menção é a
montagem do documentário, que faz o paralelo da reforma na casa da Laerte com o
seu desejo de ter seios, para assim se sentir plena como mulher, ora em
diálogos, ora através das tirinhas, dessa forma o ritmo da narrativa é sempre
continuo e agradável de se ver.
Para além da estética, o filme é um soco
elegante nas masculinidades tóxicas, na transfobia, na insensibilidade do
feminismo radical para com as mulheres trans e no próprio movimento
transgênero. Laerte chega a contar, notadamente à vontade na presença de Eliane
Brum, a respeito de seu incômodo com certos posicionamentos fascistas dentro do
movimento trans, como por exemplo a escolha pela não mudança de sexo vista como
fator de exclusão. Laerte, que, sem aparente falsa modéstia, não se
considera uma mulher corajosa, teve coragem suficiente para abrir o seu mundo
para que dele nascesse um filme lindo e necessário. LARTE-SE
traz um convite para algo que mais do que nunca precisamos nesta era carente de
tolerância. Traz o convite para o diálogo, para a revisão de papéis e conceitos
formais, por meio de provocações ou reflexões do Laerte, mas que é a extensão
de nossas próprias indagações retraídas. Obrigatório e Transcendente!!
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