INDOMÁVEL SONHADORA (Beasts of the Southern Wild) EUA, 2012 – Direção Benh Zeitlin – elenco: Quvenzhané Wallis, Dwight Henry, Lowell Landes, Pamela Harper, Gina Montana, Henry D. Coleman – 93 minutos.
O diretor novaiorquino Behn Zeitlin tira do fundo da Louisiana uma história que funde documento, drama e fantasia: em tom documental, filmado quase sem refletores e em película 16 mm, o filme conta a história da pequena Hushpuppy, uma garota residente da Banheira, uma pequena comunidade em uma ilha cercada por águas agitadas que correm o risco de deixar a comunidade debaixo d’água na primeira tempestade forte. Embora o local seja fictício, inspira-se numa ilha real – a Isle de Jean Charles, já na parte da Louisiana que se mistura com o Golfo do México, e que a cada dia perde um pouco mais de espaço para o mar. Em comum, a Isle de Jean Charles e a “Banheira” têm a teimosia dos seus habitantes, que insistem em permanecer em suas casas mesmo com a água na canela. Junto com seu pai, Hushpuppy cresce se esforçando para sobreviver junto com seus vizinhos, todos pessoas perseverantes que adoram o local onde nasceram. Hushpuppy gosta de pensar em si e nos seus vizinhos como bestas da natureza selvagem, indivíduos fortes e de muita fibra moral; seus sonhos e devaneios são povoados constantemente por suínos imensos, peludos e com chifres. O roteiro é simples e funcional: lentamente somos levados a participar de um universo estranho e singular; com a fotografia naturalista em conjunto com seus poucos efeitos especiais para construir a atmosfera próxima porém absurda, o filme revela-se de uma narrativa nem um pouco pesada ou difícil de se assistir: seus personagens são empáticos, curiosos ou apenas engraçados o suficiente para que a conexão com o grande público seja estabelecida de forma rápida.
É com um atraso de sete anos que INDOMÁVEL SONHADORA (Beasts of The Southern Wild) chega para lavar a alma dos afetados pelo furacão Katrina, em 2005; mas o filme – vencedor do Grande Prêmio do Júri em Sundance e do Camera d’Or em Cannes – tira o atraso com impacto, numa mistura de fábula dickensiana com drama apocalíptico. Em 2008, o premiado curta do diretor - “Glory at Sea” – já tocava nos temas que seriam estendidos em INDOMÁVEL SONHADORA: a rotina dos moradores dos pântanos da Louisiana transformada em desamparo depois da passagem do furacão que fez transbordarem as águas do Estado. Antes ainda, em 2005, Benh Zeitlin fizera uma versão animada de “Moby Dick”, no seu curta-metragem de estreia “EGG”. Saber que o diretor novaiorquino – que vistou Nova Orleans pela primeira vez com a família, de férias, aos 13 anos – mantém uma relação de atração com os perigos do mar ajuda a entender o que INDOMÁVEL SONHADORA tem de potente.
O filme, formado por um elenco só de locais e cuja direção é assinada pelo coletivo Court 13, que Benh Zeitlin criou em 2004 em Nova Orleans para mover a produção de cinema independente local, não é um filme fácil. Seu ritmo lento e contemplativo se mostra distante dos grandes públicos, acostumados com algo mais palatável. O tom documental serve para transformar tudo em realidade, mesmo que fantasiosa. A câmera na mão, sempre em movimento, recorta cenas de maneira instigante, encontrando ângulos belíssimos e incomuns, repletos de luz na maior parte do tempo. O diretor iniciante oferece apenas reflexão com sua obra. Apesar da trilha sonora inspirada nos direcionar a um tom melancólico e dramático, o sentimento nunca se completa. Existe certa austeridade no filme, um contraste certamente irônico ao clima mágico estipulado. É realmente desagradável ver toda a sujeira em que estes seres humanos vivem, a forma precária com que se alimentam, a falta de educação etc. E é este incomodo o maior mérito de INDOMÁVEL SONHADORA, pois é ele que nos leva a tamanha reflexão. É um filme que nunca foge do horizonte de expectativas a que se propõe.
O grande destaque do filme é sem dúvida a atriz mirim Quvenzhané Wallis. Sua naturalidade é algo descomunal, e é o principal motivo de tudo parecer simplesmente realidade. Apesar de poucas falas, ela é a responsável por um tocante voice-over que, hora ou outra, expõe seus pensamentos distantes de nossa concepção, quase sempre pontuados por sentenças imperativas, um reflexo de sua existência movida a costumes e instintos de sobrevivência. O roteiro de Lucy Alibar, em parceria com o diretor Zeitlin, traz simplicidade em sua estrutura, mas se torna complexo devido a ambientação geral. A trilha sonora de Dan Romer, também em parceria com o diretor, é muito importante para o resultado final. Resumindo, é um filme excepcional, que se movimenta por caminhos diferentes, que levam principalmente à reflexão dos problemas de nossa sociedade, com suas diferenças e injustiças, nos fazendo entender a motivação dos sonhos daqueles que aparentemente não tem nada com que sonhar, que já nasceram sem alternativas. Mas contrariando este senso comum, os mesmos são carregados de esperanças, pelo menos enquanto crianças.